Três anos e uma carrada de minutos depois, a segunda incursão de Peter Jackson pela Terra Média chegou ao fim. Valeu a pena? Ou será que devemos aplicar aqui a velha máxima do "nunca voltes a um lugar onde foste feliz"?
"The Hobbit", a trilogia, é um caso complicado de analisar. Se por um lado é óbvio que foi criada para sacar dinheiro à custa da nostalgia (dois filmes seriam mais do que suficientes para contar o que aqui se passa), por outro é inegável que foi trabalhada com uma atenção ao detalhe e um carinho pela material de origem muito raro hoje em dia.
Tudo o que tornou a trilogia original num clássico moderno continua presente. A Terra Média continua a ser um lugar visualmente arrebatador e os seus habitantes continuam igualmente entranháveis. O problema é que desta vez, e muito por culpa das constantes referências aos filmes anteriores, ficamos com a sensação que ainda não há nada de realmente importante a acontecer.
Se na trilogia anterior sentiamos a urgência e o perigo à espreita em cada esquina, agora que chegámos ao fim desta nova demanda (e esse sentimento agrava-se neste último capítulo por razões óbvias) sentimos apenas que o pior ainda está para vir e que nada do que aqui se passou é importante na grande ordem do universo Tolkiano.
"The Hobbit", tal como Tolkien o escreveu, é um conto sobre a descoberta de um mundo novo por um protagonista inesperado. É uma pequena história de aventura, nem demasiado imponente nem demasiado urgente. Aqui foi tratado como uma nova trilogia do anel, demasiado épica para o seu conteúdo.
Feitas as contas, "The Battle of the Five Armies" acaba por ser o capítulo mais concentrado desta nova trilogia.Os eventuais problemas de ritmo dos capítulos anteriores ficaram para trás (felizmente este é o mais curto dos três filmes), as pontas foram devidamente cortadas e temos até direito a um confronto épico no gelo que vai certamente ficar entre os mais memoráveis de toda a saga.
Sim, é certo que não deixa de ser uma viagem de turismo pela Terra Média, mas é uma viagem fantástica e reconfortante que, apesar das suas falhas, nos deixa com uma vontade indiscritível de tirar os DVDs da trilogia anterior do armário. E isso é o melhor que podemos pedir a uma prequela.
Depois de ter sido tantas vezes acusado de não saber filmar sentimentos, Chris Nolan tenta provar em quase três horas que o amor é o que faz o universo funcionar.
Como três horas ainda é muito tempo (pelo menos enquanto mantivermos os pés assentes no nosso pequeno planeta azul), Nolan trocou a autoestrada pela estrada nacional e aproveitou para apreciar as vistas e comer um cozido no Canal Caveira.
Através de uma estrutura narrativa bem definida (provavelmente os três atos mais óbvios da sua filmografia), Nolan reflete sobre o que nos faz humanos, o nosso papel na sociedade, aquilo que seríamos capazes de fazer em condições extremas e o amor em geral. Nenhum dos temas é especialmente original no cinema mainstream, mas o tratamento Nolan eleva-os da mediocridade a que estamos habituados.
Lá pelo meio vai brincando com conceitos quânticos de encher o olho (apesar de não conseguir fugir de alguns paradoxos capazes de levar à destruição da nossa galáxia), com a ajuda de um Matthew McConaughey em grande forma e de um monolito cheio de personalidade.
Visualmente poucos foram capazes de mostrar o espaço desta maneira. O universo deixou de ser o habitual imenso vazio para se transformar num perigoso oceano habitado por adamastores quânticos.
Mas como Nolan é Nolan, também não faltam os inevitáveis excessos expositivos - como se se visse obrigado a explicar constantemente o que se está acontecer, não vá o diabo tecê-las - e alguma atrapalhação narrativa quando tenta cortar as pontas soltas.
Talvez seja demasiado metódico e calculista para algumas ambições emocionais, mas é um tipo corajoso e talentoso que quando acerta, acerta em cheio. Talvez por isso as suas falhas deixem um sabor tão amargo.
Depois de muitas polémicas e protestos, o reboot das Tartarugas Ninja lá acabou por estrear. Apesar de confinado ao papel de produtor, o infame Michael Bay é tido como o grande responsável pelo filme e acaba mesmo por ser a principal influência nas poucas marcas de estilo que podemos encontrar por aqui.
O grande problema deste "Teenage Mutant Ninja Turtles" está longe de ser o design dos protagonistas (curiosamente a opção de individualizar cada personagem até acaba por torná-los mais interessantes). Também não podemos dizer que o produto final (sim, porque não é mais do que um produto, como os bonecos que pretende vender) cospe na infância de quem cresceu nos anos 80/90, porque ao contrário do que se defende por aí, o material de origem também não era grande coisa.
O maior pecado deste filme não é não ser um bom filme (porque ninguém estaria à espera que o fosse). O que realmente o mata é nem sequer ter coragem para ser um mau filme.
Este "Teenage Mutant Ninja Turtles" é um produto banal, genérico, que faz com algum brio o pouco que se propõe a fazer, mas que falha redondamente à hora de despertar qualquer tipo de emoção.
Por onde anda o Vanilla Ice quando precisamos dele?
Aquilo que mais me agrada no cinema enquanto arte (e são muitas as coisas que me agradam), é a forma como se conseguem construir narrativas que funcionam muito para lá daquilo que efetivamente nos é contado. O cinema vive de subtilezas, de olhares, de expressões e de silêncios. Nos bons filmes, nada é deixado ao acaso.
"American Hustle" é um desses filmes. Por debaixo de uma capa de Scorsese barato, ultra-estilizado, a roçar um trabalho de final de curso, há um mundo de subtilezas. Enquanto o David O. Russell vai brincando com a câmara e imitando os truques dos crescidos, o elenco toma conta do filme e com ele chega-nos uma humanidade acima da média. Este é um filme de atores. Ponto. Provavelmente o exemplo mais flagrante dos últimos anos. Mas comecemos pelo início.
Christian Bale é um monstro, faça o que faça, mas sobretudo é um monstro que não tem medo de se eliminar da equação. Não é fácil desaparecer atrás dos personagens, mas Bale domina a arte como poucos. Irving Rosenfeld não é Christian Bale. Irving é um perfeito desconhecido. É um indíviduo frágil de moral dúbia mas bom coração que nos vai conquistando à medida que a narrativa se vai desenvolvendo. É um personagem subtil, escondido atrás de uma aparência rídicula (no fundo como o próprio filme) e Bale sabia melhor que ninguém que essa aparência, para além de acrescentar várias camadas de profundidade ao personagem, seria essencial para o tornar credível.
Bale é o elemento central deste batido de enganos e revelações, mas não está sozinho. Amy Adams acrescenta o mistério, Bradley Cooper a ambição descontrolada e Jennifer Lawrence a loucura e a frescura dos bons batidos. Juntos conseguem criar uma das mais saborosas refeições do ano cinematográfico.
A questão que se coloca é: de que forma deveremos encarar a realização de O. Russell? Estamos perante uma homenagem tarantinesca a Scorsese? Ou apenas uma cópia descarada de um género?
Eu aponto para a primeira. Não que reconheça no David O. Russell o talento indiscutível que a Academia norte-americana teima em atribuir-lhe, mas porque a surpreendente subtileza do argumento não deixa grandes dúvidas sobre as suas intenções. Não tem a criatividade nem a distância do Tarantino, mas não se saiu mal.
Quando vemos a mestria com que Steve McQueen controla a câmara naquele imenso e brutal plano sequência algures no terceiro ato de "12 Years a Slave", é difícil acreditar que esta é apenas a terceira longa metragem do realizador londrino.
Há muita coisa para gostar em "12 Years a Slave", a começar pela escolha de Chiwetel Ejiofor . Para que um filme destes funcione (e por "destes" entenda-se "dramalhão histórico baseado numa história verídica relativamente desconhecida"), o protagonista tem de se transformar no seu personagem. Isso só acontece se a) o protagonista for um ator do caraças e b) não soubermos o nome dele de cor. Ora, Ejiofor, para além de ter um nome que me obriga constamente a ir ao IMDb fazer copy paste, consegue destruir-nos emocionalmente com um simples franzir de testa. O seu Solomon Northup é uma subtil mas poderosa construção emocional, só ao alcance dos melhores.
Em termos globais isto não serviria de nada se Ejiofor não fosse apoiado por um elenco de secundários sólido. Paul Giamatti, Paul Dano e Benedict Cumberbatch, embora não tão presentes, ajudam a construir de forma exemplar a textura geral desta narrativa, com os dois primeiros a representar a face mais cruel da escravatura e o terceiro a encarnar o homem nobre mas frágil, rendido a uma sistema que o pode esmagar a qualquer momento.
A Michael Fassbender, colaborador de longa data de McQueen,calhou-lhe o imprevisível e assustador Edwin Epps, o verdadeiro nemesis emocional de Northup. Que Fassbender era uma besta (no melhor dos sentidos), já todos sabíamos. Mas não deixa de ser surpreendente o que este tipo nos consegue fazer sentir em tão pouco tempo.
Do lado feminino o destaque vai para Lupita Nyong’o, esta sim verdadeiramente desconhecida, que dá rosto a Patsey, o personagem mais trágico do filme (mais ainda que o próprio Northup), que teve o azar de se transformar no objeto de desejo do seu dono e, consequentemente, alvo dos ciúmes de uma cruel Sarah Paulson.
Se tudo isto é essencial para tornar "12 Years of Slave" num dos filmes do ano, aquilo que mais me agradou foi a forma crua com que McQueen não teve medo de contar uma história feita para os Óscares, despindo-a de qualquer artefacto emocional. Onde alguns pornógrafos da desgraça como Lee Daniels ou Iñarritu optariam por um grande plano cravado de lágrimas e uns violinos deprimidos a chorar em fundo, McQueen escolhe planos afastados, coloridos apenas com os sons do quotidiano, que fazem brilhar o trabalho de fotografia de Sean Bobbitt. Há um afastamento emocional, a roçar o documentário, que não nos deixa, em nenhum momento, sentir manipulados.
"12 Years a Slave" é um objeto único. Emocional sem ser lamechas, duro sem ser gratuito, que dá uma cara e um nome a uma das facetas mais cruéis da humanidade.