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O videoclube em frente ao ciclo

Hannah Clendening.png

Foto © Hannah Clendening

Quando estava a tentar lembrar-me do código pessoal de um telemóvel que tinha arrumado numa gaveta, fui atingido por 4 algarismos certeiros, disparados a toda a velocidade do recanto mais obscuro do meu subconsciente. Não era o número que eu pretendia - esse continua perdido algures entre o id e o superego - mas acabou por revelar-se muito mais interessante. 5129: o meu número de cliente do videoclube em frente ao ciclo.

Foi com esse número que tive acesso, pela primeira vez, à trilogia original da Guerra das Estrelas, pouco antes de o Lucas a transvestir. Os filmes antigos custavam 200 escudos por dia e o mais recentes 350. Só dessa vez deixei lá 600 paus. Foram os três de enfiada e outros tantos pacotes de pipocas de micro-ondas.

Lembro-me de lá entrar com um grupo de amigos no final das aulas (ou no intervalo, tanto fazia). Lembro-me de passar horas a percorrer as centenas de capas plastificadas dos arquivos, sem conhecer metade dos filmes que ia encontrando. Mas não me importava. Era o prazer da descoberta, a magia de encontrar aquele diamante escondido, aquele filme que iria aconselhar até à exaustão no intervalo das aulas.

Foi lá que descobri, completamente por acaso, o SpaceBalls, muito antes de saber quem era o Mel Brooks, ou o que pensavam os utilizadores do IMDB. O meu IMDB era o Sr. Carneiro, o dono do videoclube. O Sr. Carneiro era um sujeito encorpado, alto, com uma voz poderosa que fazia estremecer as estantes a abarrotar de cassetes. Tinha uma filha que passava as tardes a ver filmes do Hugh Grant, mas acho que nunca soube o nome dela.  Era o Sr. Carneiro que me mantinha a par das novidades mais explosivas (se não fosse a tempo podería ter de esperar semanas para ver o último «blockbuster») e me aconselhava os clássicos verdadeiramente imperdíveis. Cheguei a alugar o mesmo filme 4 vezes num mês: o Regresso ao Futuro. Que outro haveria de ser?

De 3 em 3 meses os posters da montra eram renovados e os velhos eram deitados para um caixote do lixo debaixo das escadas. Curiosamente, estavam sempre impecavelmente enrolados, como se fossem ali arrumados provisoriamente, à espera dos novos donos que lhes iriam dar um lugar de destaque por cima da cama. Ainda tenho um atrás da porta do meu quarto na casa dos meus pais.

O videoclube em frente ao ciclo era muito mais do que uma loja de filmes. Era uma comunidade de pessoas vulgares que partilhavam a mesma paixão e se juntavam num espaço físico a discutí-la abertamente, sem pretensões de se tornarem críticos de cinema ou cineastas reconhecidos. 

Na altura, um filme não era apenas um ficheiro a ocupar espaço no computador, que não conseguimos ver até ao fim sem ir 14 vezes atualizar o estado do Facebook, ou ir ao You Tube ouvir aquela música que a protagonista está a trautear. Um filme era algo físico, palpável, que nos levava a viajar sem interrupções durante hora e meia por sítios onde nunca iríamos estar.

Claro que na altura não sabíamos isso.